Dois egos entram num bar… e a razão pede a conta

Você entra armado de ideias como quem leva bisturi para cirurgia. Ele entra de peito estufado, como quem leva faca de pão para duelo medieval. Você cita autores, dados, pesquisas. Ele invoca a fé inabalável do ignorante, aquela que nem telescópio da NASA desmente. No ringue da discussão, não há árbitro: só dois gladiadores sem plateia que saiba diferenciar a espada da colher.

A psicanálise já entregou o spoiler: não é lógica, é ego. E não apenas o ego dele, inflamado e barulhento. O seu também, delicadamente maquiado de “razão”. Porque o tolo só floresce quando alguém rega. Sem plateia, não há espetáculo. Sem um sábio querendo provar sabedoria, não há tolo que se sustente. O desejo dele é controlar. O seu, provar. No fundo, são dois mendigos competindo por uma moeda invisível chamada reconhecimento.

Freud chamava isso de narcisismo das pequenas diferenças: brigamos mais ferozmente com aqueles que estão próximos demais da nossa maneira de ser. O tolo, no fundo, é seu vizinho psíquico — e talvez seja justamente por isso que ele lhe incomoda tanto. Você se reconhece nele, e recusa o espelho.

O problema é que a ciência contemporânea complica ainda mais essa tragédia cômica. O Efeito Dunning-Kruger (até já escrevi sobre isto(Kruger & Dunning, 1999) mostra que quanto menos alguém sabe, mais confiança tem em sua própria burrice. E quando você tenta explicar, ele não aprende. O efeito backfire (Nyhan & Reifler, 2010) garante que, quanto mais você insiste em corrigi-lo com fatos, mais ele se agarra às convicções. Você acha que está regando uma planta de razão, mas está alimentando a trepadeira da ignorância.

E aí começam os truques baratos: mudar de assunto, atacar sua pessoa em vez do argumento, distorcer palavras, inflamar emoções. Para ele, não é sobre convencer; é sobre desequilibrar. Ele não procura clareza; procura palco. É o caos travestido de debate.

Do lado de fora, os espectadores não percebem nuances. Veem apenas dois indivíduos que perderam a compostura. Quando o sábio desce ao nível do tolo, o mundo só vê dois tolos no mesmo degrau. É nesse ponto que a distinção se perde. Você queria mostrar inteligência e acaba só exibindo cansaço.

Na clínica, aprendemos que certas batalhas não se vencem com argumentos, mas com silêncio. O silêncio, nesse caso, não é derrota: é corte. Ele interrompe o circuito da provocação. É como retirar a lenha da fogueira: o fogo pode espernear, mas acaba se apagando.

E essa é a chave da verdadeira sabedoria: saber escolher batalhas como quem escolhe flores no jardim — algumas flores merecem cuidado, outras só espinhos. Debater não é colecionar pontos; é cultivar entendimento. Transforme a palavra em ponte, não em projétil; em iluminação, não em incêndio. Há conversas que abrem janelas, e há embates que só deixam fumaça.

Nietzsche avisou: “aquele que luta com monstros deve cuidar para não se tornar um deles”. Troque monstros por trolls, e o recado não muda. Cada ataque pessoal, cada falácia lançada, é uma escada que desce para o porão mental do outro. Não vá lá. Mantenha a luz acesa na sua sala. Ela ilumina mais que qualquer grito.

Não existe troféu para a disputa com um tolo. Só desgaste, cansaço e rugas prematuras no ego. Às vezes, a vitória real é recusar o jogo — virar de costas e deixar o outro falar sozinho, ecoando no vazio de suas próprias certezas.

E se Freud, Nietzsche e até o Dunning-Kruger e esta escrita não convenceram, olhe para o pombo: ele não perde tempo discutindo com corvos, não posta contra gaviões no Twitter e nem responde DM de gaivota provocadora. Ele simplesmente abre as asas e voa, com aquela calma elegante de quem sabe que ninguém vai aplaudir o vôo, mas também ninguém vai derrubar a sua dignidade.

O que importa não é vencer a guerra de egos, é preservar a sanidade, economizar energia para quem realmente quer aprender e, acima de tudo, continuar voando — mesmo que seja sobre uma cidade ensurdecedora, cheia de gritos, buzinas e egos inflamados que acreditam que estão ganhando.

Referências pra usar no happy hour:

Psicanálise e ego

  • Freud, S. (1921). Grupos e análise do ego.
  • Klein, M. (1935). O desenvolvimento do ego.
  • Winnicott, D. W. (1965). O ambiente e os processos de maturação.

Cognição, viés e comportamento

  • Kahneman, D. (2011). Rápido e devagar: duas formas de pensar.
  • Tversky, A., & Kahneman, D. (1974). Judgment under Uncertainty: Heuristics and BiasesScience, 185(4157), 1124–1131.
  • Nickerson, R. S. (1998). Confirmation bias: A ubiquitous phenomenon in many guisesReview of General Psychology, 2(2), 175–220.

Efeitos de persuasão e resistência à informação

  • Nyhan, B., & Reifler, J. (2010). When corrections fail: The persistence of political misperceptionsPolitical Behavior.
  • Lewandowsky, S., Ecker, U. K., & Cook, J. (2017). Beyond misinformation: Understanding and coping with the “post-truth” eraJournal of Applied Research in Memory and Cognition, 6(4), 353–369.

Filosofia e ética da discussão

Nietzsche, F. (1886). Além do Bem e do Mal.

Popper, K. (1945). A lógica da pesquisa científica.

Arendt, H. (1970). Sobre a violência.

Metáforas, humor e ironia na argumentação

Bergson, H. (1900). O riso: ensaio sobre a função social da comicidade.

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