Era Só Explicar Direito

Sempre desconfiei que o maior entrave da República não era a inflação, a corrupção ou a mania do brasileiro de achar que “cinco minutinhos” é uma unidade de tempo reconhecida pela ONU. O verdadeiro problema estava lá, escondido em letras miúdas, parágrafos intermináveis e carimbos obsoletos: o Brasil não se entendia consigo mesmo. A cada documento público, o país conversava com o cidadão como quem recita Pitágoras em anglo-saxão para uma plateia de bebês — e ainda esperava ser compreendido.

Pois agora, num daqueles lampejos de genialidade legislativa que de vez em quando acertam o Congresso como raio em árvore solitária, resolveram nos salvar de nós mesmos. Descobriram que, depois de 204 anos de Independência e 137 de República, o grande problema nacional não era a fome, nem o trânsito, nem a CPI da CPI da pré-CPI, mas… a ausência da tal Linguagem Simples. E decidiram criar uma lei para que o governo fale como gente que pega ônibus.

Quando ouvi, pensei que fosse pegadinha. Algo entre a Lei da Gravidade e o Código de Hamurábi, só que voltado para o milagre de fazer a administração pública escrever frases claras, diretas e curtas. Um sonho tropical. O Estado inteiro, do cartório mofado ao gabinete climatizado, deveria adotar palavras comuns, ideias compreensíveis e frases que não precisassem de arqueólogo linguístico para decifrar.

E a pergunta inevitável apareceu: — Por que não fizeram isso antes? Simples: porque ninguém teria entendido.

O brasileiro médio está tão acostumado à burocracia que, se receber uma mensagem dizendo “Seu pedido foi aceito. Pode vir pegar”, vai achar que é golpe. Prefere a velha cantilena oficial: “Considerando o disposto no art. 286, em caráter excepcional, deferimos o pleito supra, consoante parecer da unidade competente.” A segunda não resolve, mas conforta. Chá de boldo legislativo.

A nova lei manda começar pelo que interessa. Isso é revolucionário. Portarias que antes iniciavam com a história do Brasil — passando por Dom Pedro, Proclamação da República e, às vezes, a Constituição de 1824 — agora devem abrir com “Pode” ou “Não pode”. É quase uma declaração de modernidade. Outro ponto é o veto às palavras estrangeiras que não sejam de uso corrente. Imaginem o desespero dos consultores que construíram suas carreiras em cima de stakeholdersdeliverables e compliance. Há gente, em alguma sala com carpete azul, tentando até agora achar uma tradução para benchmarking. Sugeriram “medir o vizinho”. Foi imediatamente rejeitado. E com razão.

A lei exige, ainda, frases na voz ativa. Adeus ao país onde “foram extraviados os documentos”. Bem-vindo ao Brasil onde “perdemos seus documentos mesmo, meu senhor”. Um progresso moral.

E claro: testar tudo com o público-alvo. O que, no caso do brasileiro, é sempre uma aventura. Porque brasileiro, quando não entende, inventa. Quando entende demais, suspeita. E quando finalmente compreende, pergunta se trocou o governo e não avisaram.

Mas aí vem a grande questão: vai funcionar? Talvez, mas com aquela cautela que só quem já enfrentou repartições públicas pode ter.

Linguagem simples exige pensamento simples. E isso não se decreta. Treina-se. Lapida-se. É preciso ensinar o servidor a trocar “averiguar” por “ver”, “encaminhar” por “mandar” e “providências cabíveis” por “o que precisa ser feito”. Começa a parecer poesia concreta; falta só o concreto.

A intenção é nobre: devolver o Brasil ao português. Esse idioma doméstico, falado no boteco, na fila do pão e até no boletim escolar, mas jamais visto em documentos oficiais, que insistem em soar como latim ressuscitado a marretadas. Se a lei pegar, talvez um dia a gente consiga decifrar a fatura da luz sem precisar de aspirina. Aí sim poderemos dizer que houve progresso: não um salto tecnológico, mas um salto sintático. Enquanto isso, torço para que a simplicidade vire hábito. Porque, se conseguirem simplificar a língua, quem sabe um dia simplificam até o país — e isso, meus amigos, já seria ficção científica.

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