Se a civilização moderna está a um tweet de distância do colapso, a culpa não é só da ganância, da corrupção ou da inteligência artificial que recomenda vídeo de gato enquanto você procura receita de arroz. O real motor do apocalipse é mais discreto, porém muito mais devastador: a falência da interpretação de texto.
E não é exagero retórico. Segundo o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), divulgado pelo Instituto Paulo Montenegro e pela ONG Ação Educativa (2018), apenas 12% dos brasileiros adultos são plenamente proficientes em leitura e interpretação. Ou seja, mais de 80% da população pode até conseguir juntar as letras, mas tropeça na hora de entender um parágrafo mais complexo do que uma placa de “Puxe” numa porta de vidro.
Aliás, a tal da “porta de vidro com PUXE escrito” já foi tema de artigos acadêmicos. Em “O imperativo como violência simbólica: notas sobre o ‘puxe’ e o ‘empurre’” (Revista Linguagem & Sociedade, UnB, 2009), discute-se como comandos simples carregam cargas simbólicas, pressões sociais e até um quê de humilhação pública. Afinal, nada mais democrático do que ver alguém tentando empurrar uma porta com cara de quem luta contra o destino.
Vivemos uma era em que frases banais geram debates furiosos. Escreve-se “Favor não alimentar os pombos” e surgem movimentos em defesa do pombo urbano como espécie marginalizada. Há quem acuse a frase de “especismo linguístico” — e não, isso não é piada: filósofos como Peter Singer, em “Animal Liberation” (1975), de fato propõem o fim da hierarquia moral entre espécies. Mas daí até alimentar pombo com coxinha e guaraná, há uma queda de raciocínio que nem Nietzsche explicaria.
A internet, claro, não ajuda. Em seu livro “Os Engenheiros do Caos” (2020), Giuliano da Empoli mostra como as redes sociais reforçam interpretações emocionais, não racionais. A frase “Hoje está calor” vira polêmica nacional. Uns dizem que é negacionismo climático; outros, apropriação cultural do calor nordestino; e há quem organize passeatas exigindo a prisão do sol. Enquanto isso, o autor da frase, coitado, está só suando mesmo.
O analfabetismo funcional não é falta de escolaridade apenas — é falta de letramento social. Em entrevista à revista Nova Escola (2017), especialistas dizem: “Interpretar é ir além da decodificação. É entender o contexto, o propósito, o sentido”. E esse “além” parece, para muitos, tão inalcançável quanto um manual de instruções da Receita Federal.
Hoje, o texto é menos um veículo de ideias e mais um espelho emocional: você lê o que sente, não o que está lá. A psicanalista Maria Rita Kehl já apontava isso em “O Tempo e o Cão” (2009), ao mostrar como o sujeito contemporâneo é regido mais pelo afeto do que pela razão. Daí, se uma receita de bolo lhe desperta gatilhos da infância, a culpa não é da infância, nem do forno — é da farinha, do autor, da gramática normativa e, claro, do patriarcado.
No fim, sobrarão só os avisos. Mas nem esses escapam. A placa “Silêncio” será interpretada como censura ideológica; “Pare”, como opressão do trânsito sobre o livre-arbítrio; e “Proibido fumar” gerará teses sobre o apagamento histórico dos fumantes como grupo de risco afetivo.
E assim seguimos: tropeçando nas palavras, escorregando nos advérbios, batendo a testa nas entrelinhas — e depois processando o chão por não ter avisado que era metáfora. Porque, no fim, ninguém mais lê pra entender. Lê-se pra discordar. Ou pra se ofender, que dá mais curtida.
O sujeito não lê o texto. Ele lê a si mesmo passando pelo texto. E se não gosta do que vê, culpa o espelho, a gramática, o autor, a escola e, com sorte, até a vírgula — essa grande culpada dos desentendimentos conjugais e institucionais.
A comunicação virou um espetáculo de má fé hermenêutica. O escritor é culpado até que prove que não teve intenção de machucar ninguém com o uso indevido de um pronome neutro ou de uma onomatopeia traumática. E mesmo assim, será cancelado preventivamente — por via das dúvidas e likes.
O que sobra é um mundo em que ninguém diz mais o que quer dizer — e ninguém entende o que foi dito. É o diálogo entre surdos com fone de ouvido, mediado por gente que só leu o título.
Moral da história?
Se você leu até aqui e entendeu, parabéns: você corre sério risco de ser considerado perigoso. Porque, hoje em dia, compreender um texto é o novo ato subversivo.


