Na perspectiva psicanalítica, ser humilde não é simplesmente abaixar a cabeça ou evitar o orgulho — é, antes de tudo, um reconhecimento interno das próprias limitações e potências. Humildade, nesse sentido, não é sinônimo de submissão, mas de realidade psíquica bem administrada.
Para Freud, o ser humano vive em tensão constante entre seus desejos inconscientes (aquilo que o id quer gritar) e as exigências da civilização (aquilo que o superego exige com régua e compasso). A humildade surge quando o ego — esse malabarista da consciência — consegue encontrar um ponto de equilíbrio entre o delírio de onipotência infantil e a culpa moralizadora que herdamos dos pais, da cultura e do medo de sermos punidos.
Ser humilde, então, é admitir que não somos o centro do universo. Nem da nossa própria psique. É saber que temos desejos contraditórios, que erramos sem querer e, às vezes, querendo. É reconhecer que o saber nunca é completo, que o amor nunca é garantido e que a verdade, no divã, é sempre um pouco provisória.
Mas atenção: humildade não é se diminuir — é se dimensionar. Saber que há grandeza em reconhecer a própria ignorância. Que há força em assumir a vulnerabilidade. E, acima de tudo, que quem precisa o tempo todo parecer grande talvez esteja apenas tentando esconder o quanto se sente pequeno.
Dito isto, a gente pode seguir no texto com uma análise mais continundente que nos permite dizer que humildade é aquela qualidade que todo mundo diz que tem, especialmente quando não tem mais nada. É o carro velho que a gente chama de “vintage”, o chinelo remendado que virou “minimalismo” e a ausência total de dinheiro que batizamos, poeticamente, de “vida simples”. E o que é a vida simples? É a vida dos outros, simples assim.
O pobre, coitado, não pode nem ser orgulhoso. Orgulho de quê? Do boleto vencido? Do feijão sem arroz? Se der sorte, talvez possa se orgulhar de ter conseguido sair do mercado com tudo que estava na lista — o que, convenhamos, já é uma proeza olímpica.
A sociedade adora bater palmas para a humildade, mas só quando ela cabe no enquadramento bonito da foto em preto e branco com legenda de Clarice Lispector (que, diga-se de passagem, nunca disse metade do que dizem que ela disse). É o tipo de virtude que é linda no Instagram dos outros, desde que o filtro oculte o barraco e evidencie o nascer do sol.
Agora, veja só a ironia: o rico quando é humilde vira santo. Sai na Forbes com a legenda: “Empresário bilionário vive de maneira simples”. Simples como? Só tem três iates. Já o pobre vive com simplicidade não porque escolheu — mas porque o cartão já estourou faz tempo. A diferença é que um pode ser humilde. O outro é porque não tem escolha. E humildade sem opção é que nem dieta de quem não tem dinheiro pro pão: virou jejum intermitente sem querer.
E ainda tem gente que diz que os pobres são mais livres porque não têm nada a perder. Claro! O camarada já está no chão, o que mais pode acontecer? Escavar? A liberdade da falta é uma liberdade meio torta: você pode ir aonde quiser, desde que vá a pé, com fome e volte antes do toque de recolher do desespero.
Aliás, humildade mesmo seria o rico devolver o que não precisa. Viver com menos, abrir mão do excesso, renunciar ao terceiro carro, ao quinto apartamento, ao décimo hobby. Mas isso dá trabalho, e ninguém quer ser humilde por esporte. O bom mesmo é ver os outros sendo humildes — de preferência longe, calados, e sorrindo.
Essa tal humildade compulsória é como aquele presente de aniversário de quem esqueceu a data: improvisada, sem laço, e ainda querem que você diga “obrigado”. Obrigado por nada. A humildade é uma virtude maravilhosa — quando não é a única coisa que sobrou depois que te tiraram tudo.
Saiba mais — Referências Acadêmicas e Filosóficas:
SEN, Amartya. Pobreza e Famines: Um Ensaio sobre Direitos e Privações. Oxford University Press, 1981. —
BOURDIEU, Pierre. A Miséria do Mundo. Vozes, 1997.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. 1887.
BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo: A Transformação das Pessoas em Mercadorias. Zahar, 2008.
LIMA, Barreto. Triste Fim de Policarpo Quaresma. 1915. —
SWIFT, Jonathan. Uma Modesta Proposta. 1729.
GALEANO, Eduardo. O Livro dos Abraços. L&PM, 1989 —
CERQUEIRA, Luís. A Riqueza dos Pobres: Como Sobreviver Sem Dinheiro no Capitalismo. Editora Letramento, 2020.


