Na infância, bastava dividir um lanche — um Bis, uma bala Soft, um salgadinho daqueles que vinham com brinde — e pronto: amizade instantânea, sem contrato, sem prazo, sem cláusula de confidencialidade. Depois dos 30, porém, até marcar um café exige mais negociação que acordo de paz no Oriente Médio.
O problema é que crescemos. E crescer é isso: pagar boletos, perder cabelo, ganhar barriga e, sobretudo, perder amigos. O psicólogo Jeffrey Hall, da Universidade do Kansas, até fez as contas: precisa de 50 horas para transformar um conhecido em amigo e mais de 300 para consolidar um “melhor amigo” (Hall, 2018). Convenhamos: depois dos 30, se alguém tem 300 horas livres, provavelmente não tem amigos porque está preso.
O cientista social Richard Reeves chamou esse fenômeno de “recessão da amizade” (Reeves, 2022). Um nome bonito para uma realidade feia: vivemos um mundo em que a amizade não cabe na agenda. Amigo virou artigo de luxo, quase uma bolsa da Louis Vuitton emocional — caro, raro e só para poucos.
E atenção: não se trata de frescura, mas de sobrevivência. A psicóloga Julianne Holt-Lunstad (2015) provou que a solidão faz tão mal quanto fumar 15 cigarros por dia. O IBGE (2021) confirmou: quase 3 milhões de brasileiros não têm nenhuma rede de apoio. A OMS (2024) decretou: já vivemos uma “epidemia global de solidão”. E eu, que não sou OMS, decretaria: o ser humano virou um Wi-Fi sem senha — todo mundo conectado, mas ninguém logado.
Na infância, tínhamos incubadoras sociais: escola, rua, faculdade. Depois dos 30, o que sobra? O trabalho, que é competitivo; a família, que é exaustiva; e o WhatsApp da firma, que é infernal. Em vez de vínculos, colecionamos contatos. Em vez de amigos, followers. O século XX dizia “olhe para dentro”; o XXI exige que a gente poste para fora. Resultado: estamos sempre em companhia, mas quase nunca acompanhados.
E não se iluda achando que é só culpa do celular. A tecnologia só potencializou uma falência anterior: vizinhanças instáveis, empregos descartáveis, tempo livre virando artigo de luxo. Até a pandemia oficializou: aniversário por Zoom e luto por WhatsApp. A amizade se tornou fast-food emocional — prática, barata e indigesta.
E qual o preço disso? Simples: a normalização da solidão. Sem convívio, ficamos estranhos de nós mesmos. O espaço público deixou de ser praça e virou arena: buzina em vez de conversa, comentário raivoso em vez de diálogo. Amizade virou artigo de museu: todos reconhecem a importância, mas poucos sabem onde encontrar.
Se o século passado acreditava que a riqueza estava em ter coisas, este mostra que a verdadeira falência é não ter gente. A grande revolução não será baixar o próximo aplicativo, mas levantar os olhos da tela e perguntar ao lado: “Quer sentar aqui?”. Amizade é isso: um banco ocupado por dois. O resto — likes, seguidores, networking — é só mobília de cenário.
Referências:
Hall, J. (2018). How many hours does it take to make a friend? Journal of Social and Personal Relationships.
Reeves, R. (2022). Of Boys and Men: Why the Modern Male Is Struggling, Why It Matters, and What to Do about It. Brookings Institution Press.
Holt-Lunstad, J. (2015). Loneliness and Social Isolation as Risk Factors for Mortality: A Meta-Analytic Review. Perspectives on Psychological Science.
IBGE (2021). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua.
OMS (2024). World Report on Social Connection.
Datafolha (2023). Levantamento sobre redes sociais e vínculos no Brasil.