A internet não cria monstros. Apenas dá um palco para quem já estava pronto para a tragédia.
Só seis pessoas neste mundo — a saber: Eu, tu ele(ela), nós, vós, eles(elas) — revelam a mais profunda vocação: a criação instantânea de mitologias de ocasião. Não basta ao sujeito ter chutado uma bola para longe ou requebrado um quadril desengonçado — pronto, vira entidade, merece altar digital e romaria de likes. Nosso inconsciente coletivo, parece sofrer do complexo de Influencer: precisa urgentemente de ídolos relâmpago para adorar e, claro, para demolir em seguida com a mesma volúpia.
É como se tivéssemos fundido o jeitinho brasileiro com o superego online: criamos semideuses de terça-feira e lhes damos a eternidade de um Stories. No fundo, há algo de bonito (e levemente patológico) nessa ingenuidade compulsiva: uma fome simbólica, uma carência crônica de heróis que nos distrai da realidade bruta — como aquela feijoada de domingo que adormece a consciência crítica até segunda-feira. Tudo isso embalado, é claro, pelo batuque hipnótico das redes sociais, onde qualquer mortal pode virar mito… pelo menos até a próxima roleta do feed.
O Caso do Luva de Pedreiro: De Herói a Vilão em Poucos Atos
Em março de 2021, Iran Ferreira, o Luva de Pedreiro, viralizou com um vídeo humilde chutando bola num campinho de terra e gritando “Receba!”. Em semanas, ele foi de 285 mil para 17 milhões de seguidores, ganhou placa do YouTube, apareceu na Globo, fez propaganda e até foi elogiado pela UEFA (BBC Brasil).
Iran chutou uma bola num campinho de barro e, ao invés de quebrar a vidraça do vizinho, quebrou a internet. Ali, de chinelo e humildade, nasceu o Luva de Pedreiro, uma espécie de Pelé das redes, mas com menos gols e mais bordões. Seu grito de guerra, o imortal “Receba!”, parecia simples, mas era quase uma filosofia de vida: a vitória do improviso sobre o tédio, do campinho de terra sobre o algoritmo global.
Em semanas, Iran foi de anônimo a astro supersônico: seguidores em milhões, placas douradas do YouTube, entrevistas na Globo e, para completar o roteiro kafkiano, elogios da UEFA — aquele primo rico da pelada. Só que, como toda boa ópera brasileira, o terceiro ato não tarda: os holofotes viram holofobias, o herói vira vilão, e a internet, esse Olimpo instável, começa a cobrar o preço da idolatria instantânea. Porque no Brasil, a mesma mão que ergue o troféu do like já está com o dedo no botão do cancelamento. Receba.
Mas aí veio a queda.
Onde Tudo Começou a Dar Errado
O primeiro tropeço do Luva foi aquele clássico da humanidade: sucesso sobe, amizade desce. Logo pipocaram vídeos dos antigos parceiros de campinho dizendo que, depois da fama, Iran virou praticamente um holograma — não atendia, não respondia, não dava nem aquele vácuo carinhoso de WhatsApp. O UOL registrou o desabafo: amigos que antes dividiam a bola agora dividiam só mágoas. Porque, sejamos francos, no Brasil celebridade é quase um novo CEP, e, às vezes, mudar de endereço significa mudar de turma.
Depois veio o capítulo que nem o novelista mais dramático teria roteirizado melhor: a briga com o empresário. Alan Jesus, inicialmente pintado como o vilão de terno e pasta, acabou tendo a Justiça ao seu lado. Iran rompeu o contrato e, resultado: um belo processo e uma multa de R$ 3 milhões para pagar, como mostrou o Metrópoles. Ou seja, o chute certeiro do viral virou um pênalti contra na arena jurídica, com direito a VAR e tudo.
Mas talvez o golpe mais traiçoeiro tenha sido silencioso: o personagem engolindo o homem. A persona do Luva, que nasceu espontânea e carismática, começou a crescer como fermento fora da validade. Vieram frases grandiosas como “A chave do mundo tá na minha mão”, acompanhadas de histórias mirabolantes — tipo ter recusado convites de Messi e Cristiano Ronaldo — sem nenhuma foto, vídeo ou testemunha ocular que sustentasse. A ESPN registrou a descrença geral. E aí, meu amigo, quando o público começa a desconfiar que o mito tá ensaiando demais, a magia evapora. Porque na terra do “Receba!”, o que não falta é gente pronta pra devolver.
A Internet Cria Monstros ou Apenas Revela o que Já Existe?
Bem, esse espelho de aumento que mostra não só os poros, mas os buracos existenciais. Iran, que tinha tudo para ser o símbolo do “do nada ao estrelato” mais honesto do Brasil, acabou tropeçando na própria sombra. Porque o sucesso, ao invés de remendar o caráter, muitas vezes só estoura as costuras. Dinheiro e idolatria? São como fermento para o ego: fazem crescer rápido, mas deixam o bolo oco por dentro.
E não estamos falando só do Luva, não. O cemitério digital está lotado de “memes do bem” que escorregaram no quiabo da vaidade. O brasileiro ama um azarão, aquele sujeito que vem do nada e brilha. Mas há um detalhe: brilho sem lastro é como fogos de artifício em noite nublada — faz barulho, até emociona, mas logo vira fumaça. E a internet, esse grande Coliseu moderno, segue lotada, esperando o próximo gladiador tropeçar na própria glória para, coletivamente, apertarmos o botão do “unfollow”.
A internet é aquela professora rígida: entrega a oportunidade, mas só aprova quem já vinha estudando maturidade nos bastidores. Não adianta colar com viral, porque a prova final é de resistência — e essa não se grava em vídeo.
Dinheiro não é o vilão da peça. Só levanta a cortina e revela quem sempre esteve nos bastidores, escondido atrás do personagem. E estes, coitados são como espuma de chope: sobem rápido, somem depressa. O que sobra mesmo é o tal do caráter — esse sim, vintage, resistente, difícil de maquiar em HD.
Fontes:
BBC Brasil: A ascensão do Luva de Pedreiro
Metrópoles: Indenização milionária
ESPN: As polêmicas declarações
Referências:
Bauman, Zygmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
— Discute a fluidez das relações e identidades na modernidade, o que se conecta diretamente com a efemeridade dos “ídolos” digitais.
Debord, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
— Clássico indispensável para pensar a espetacularização da vida cotidiana e a criação de mitos modernos.
Ortega y Gasset, José. A Rebelião das Massas. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
— Analisa como a opinião pública e as massas influenciam a ascensão (e queda) de figuras públicas.
Sibilia, Paula. O Show do Eu: A Intimidade como Espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
— Essencial para entender a exposição pessoal nas redes sociais e a construção de personagens para consumo público.
Senett, Richard. A Corrosão do Caráter. Rio de Janeiro: Record, 1999.
— Reflete sobre a relação entre trabalho, sucesso e identidade em tempos contemporâneos.
Hobsbawm, Eric; Ranger, Terence. A Invenção das Tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
— Embora mais focado em tradições culturais, ajuda a pensar como mitologias populares são criadas rapidamente e absorvidas.
Lasch, Christopher. A Cultura do Narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1983.
— Um mergulho no comportamento social que valoriza a autopromoção e a busca incessante por reconhecimento.
Goffman, Erving. A Representação do Eu na Vida Cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2011.
— Clássico da sociologia sobre como todos nós, inclusive as celebridades relâmpago, encenamos papéis sociais.