Romance com nota fiscal

A crônica moderna não é mais escrita à mão — é digitada com indignação. Os dedos, antes ocupados em afagos, agora batem teclas como se fossem pequenos martelos de juízes improvisados. Rachelle Drucker, a americana de 51 anos, divorciada, ex-editora da Playboy, transformou sua solidão em denúncia pública no New York Times“Homens, onde estão vocês? Por favor, voltem pra casa.”

O problema é que a casa — outrora símbolo do aconchego — virou lugar de exílio para os solteiros. E o amor, que antes era um jogo de sedução, agora é um campo minado com aviso jurídico na entrada: “Cuidado: pode dar processo.” O que há de mais moderno na modernidade? A maneira como ela nos deixa saudosos do passado. No tempo em que os homens corriam atrás das mulheres com flores, o risco máximo era um “não” ou um tapa no rosto. Hoje, correm delas com advogados. A libido, outrora combustível do romance, foi substituída pelo medo do boletim de ocorrência.

Rachelle observa bares e baladas cheios de mulheres, enquanto os homens — tal como as baleias jubarte — desapareceram da superfície. “É medo de compromisso?”, ela pergunta. Talvez. Mas talvez seja também o cálculo frio de uma equação onde o jantar romântico pode virar prova em um processo de abandono afetivo.

A assimetria é cruel: enquanto a mulher busca elogio nos olhares dos bares, o homem só enxerga o olhar do juiz da vara de família. O amor, que antes era um risco emocional, hoje é um risco financeiro. E o coração, outrora órgão poético, agora tem um CNPJ. Aproveito o artigo de Rachelle para falar do “custo legal do afeto”. As leis de proteção às mulheres — justas em sua origem — criaram um efeito colateral: o celibato masculino defensivo. O medo não é do amor, mas do preço dele.

O amor sempre foi um contrato verbal com cláusulas emocionais. A diferença é que hoje ele exige firma reconhecida. Se antes o risco era um coração partido, hoje é uma ação judicial. A balança do amor — que sempre pesou mais para quem ama mais — agora pesa também no CPF.

E o algoritmo, esse novo cupido digital, não ajuda. Ele empurra vídeos para homens ressentidos (“fuja das gold diggers!”) e mulheres desiludidas (“onde estão os homens de verdade?”). O amor virou um jogo de algoritmos, onde ninguém se olha nos olhos sem pensar em captura de tela para eventual prova judicial.Então, minha cara Rachelle, os homens estão em casa, sim. Só que em outra casa. A deles. E com a porta trancada — não por misoginia, mas por precaução financeira. Não é que eles não queiram amar; é que, hoje, amar virou um investimento de alto risco, sem garantia de retorno e com cláusula penal pesada. O que antes era um jantar à luz de velas agora é uma reunião pré-nupcial disfarçada. O flerte, que já foi poesia, hoje é lido como “prova material”.

E não pense que isso é vitimização masculina — é apenas a conta chegando. A revolução sexual libertou as mulheres (e que bom que libertou), mas, no processo, transformou o romance em um jogo de xadrez onde cada movimento pode ser usado contra você no tribunal. O homem moderno não foge do amor; foge da conta do amor. E, convenhamos, quem pode culpá-lo? Se até os poetas românticos morreram pobres, imagine o sujeito comum, que além de pobre ainda pode sair endividado.

Mas calma, não é um problema só deles. As mulheres também sofrem — afinal, de que adianta um mundo cheio de direitos se não há ninguém para dividir a cama? O feminismo (justo e necessário) limpou a casa, mas, no processo, alguns homens resolveram se mudar para outra rua. E agora, aqui estamos nós: mulheres reclamando da solidão, homens reclamando dos processos, e os aplicativos de namoro lucrando com a confusão.

No fim, o que resta é a crônica digitada com indignação — porque até a solidão, hoje, precisa ser documentada, filmada e monetizada. Virou conteúdo. Virou like. Virou discussão de Twitter. O amor, que já foi um ato de loucura, hoje é um cálculo. E o beijo, que já foi selo de paixão, agora é visto como possível “assédio”.

Talvez a solução seja simples: que tal, por um dia, esquecermos os contratos e voltarmos a ser humanos? Sem medo, sem advogados, só dois idiotas se arriscando no velho e bom “vamos ver no que dá”. Mas isso, seria poesia demais para os tempos atuais.

E enquanto isso, os homens continuam em casa, as mulheres continuam onde elas quiserem, e o algoritmo, sorridente, sugere mais um vídeo sobre “como não cair em golpes emocionais”. O amor na era digital não morreu — só está em stand-by, esperando uma atualização judicial mais favorável.

Este texto é uma ficção qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência — ou sintoma.

Referências bibliográficas e links úteis:

  • Drucker, R. (2024). Men, Where Are You?. The New York Times. Disponível em: https://www.nytimes.com/2024/05/12/style/men-where-are-you.html
  • Bauman, Z. (2003). Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Zahar.
  • Beck, U., & Beck-Gernsheim, E. (1995). The Normal Chaos of Love. Polity Press.
  • Castells, M. (2009). A sociedade em rede. Paz e Terra.
  • Giddens, A. (1992). A transformação da intimidade. Unesp.

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