Aquela fase mágica em que você é pequeno, frágil e ignorante o suficiente para achar que adultos sabem o que estão fazendo. Ser criança é como ser um bêbado em festa de família: você pode falar bobagem, cair no chão e rir à toa, e ainda assim todo mundo acha “fofo”.
Mas o que é, ser criança? É acordar e achar que o dia é um parque de diversões, mesmo que o parque seja só um pedaço de terra com um balde furado. É acreditar que um lençol amarrado nas costas vira uma capa de super-herói. É brigar com o irmão por um pedaço de bolo e, cinco minutos depois, jurar que são melhores amigos.
É ter a liberdade de não entender nada — e não precisar fingir que entende. É desenhar um sol com óculos escuros e achar que isso é arte. É perguntar “por quê?” 487 vezes por dia e ainda assim não ter resposta para a pergunta mais importante: “Por que os adultos são tão chatos?”
E além mais, é o único emprego do mundo em que você pode ser demitido por ficar velho demais. E, quando isso acontece, você é promovido a “adulto” — um cargo que, convenhamos, ninguém realmente sabe como desempenhar direito.
Mas hoje, parece que a infância virou um fast-food emocional: as crianças já nascem com pressa de virar miniadultos, enquanto os adultos correm atrás de terapias para recuperar a criança que perderam no caminho.
Aquelas criaturinhas fofas que antes se contentavam em brincar de boneca, empinar pipa ou, no máximo, roubar biscoito da lata. Hoje? Hoje elas estão ocupadas demais dando palestras sobre mindset, escrevendo e-books sobre crypto e explicando por que você, um adulto falido, é um fracassado por ainda não ter um Porsche aos 12 anos.
Bem-vindos ao admirável mundo novo dos “mini coaches”, onde a infância foi devorada pelo algoritmo e substituída por um TED Talk de um ser de 1,20m que ainda acredita no Coelhinho da Páscoa, mas já sabe como montar uma carteira de investimentos diversificada.
O fenômeno é simples: crianças que deveriam estar sujando a roupa de lama estão agora reproduzindo discursos de Tony Robbins em versão kid size. Falam de produtividade, meritocracia e constância com a mesma naturalidade com que um cachorro late — ou seja, sem entender muito bem o que estão dizendo, mas porque alguém ensinou que assim ganham biscoitos (ou, no caso, likes).
O psicólogo Ivan Silvati, em sua sabedoria freudiana, chama isso de “falso self” — uma máscara de adulto colada num rosto que ainda tem restinho de leite na boca. A criança, em vez de brincar, vira um avatar de coach, repetindo frases como “o segredo é acordar às 5 da manhã” enquanto, internamente, só quer dormir até tarde e comer Nutella.
E quem está por trás disso? Ora, os adultos, é claro! Pais e Agentes que viram naquela criatura fofa uma mina de ouro digital. Afinal, nada vende melhor do que um bebê de uniforme social falando como um CEO da Bolsa de Valores. (Leia mais sobre os riscos da adultização infantil aqui.)
O ápice da ironia é ver esses mini gurus desdenhando da educação formal. “Pra que estudar se eu já ganho mais que meus pais?”, diz o garoto de 10 anos que acha que Bitcoin é um dinossauro do Minecraft.
O problema não é a criança falar bobagem — isso é normal. O problema é que ela está repetindo a bobagem de um adulto que lucra com isso. E pior: outras crianças estão ouvindo e achando que estão “erradas” por ainda gostarem de desenho animado e recreio. (Veja como a exposição precoce a conteúdos adultos afeta o desenvolvimento.)
O Neoliberalismo Tem Dente de Leite
Nada resume melhor nosso tempo como uma criança de 12 anos discursando sobre “construir patrimônio” enquanto, no mundo real, ela ainda pede ajuda pra abrir um pote de azeitona.
O neoliberalismo, esse velho vampiro que suga até a alma dos adultos, agora também mama na inocência infantil. Se antes a pressão era “seja um adulto responsável”, hoje é “seja um adulto responsável ANTES DOS 10 ANOS, SEU FRACASSADO”. E o resultado? Crianças ansiosas, frustradas, achando que são “inúteis” porque não têm um curso online aos 8 anos. (Estudo mostra o aumento de ansiedade infantil por pressão de desempenho.)
O que esses mini coaches provam é que o capitalismo não tem limites — nem de idade, nem de decência. Transformamos a infância num reality show de autoajuda, onde o prêmio é uma conta no PayPal e o preço é a própria identidade.
Então, pais, guardem para si suas neuroses de LinkedIn. E crianças, guardem para si os dentes de leite — vocês ainda nem sabem trocar a própria roupa, quem dirá dar lições de ‘produtividade’.
Brincadeira é coisa séria — talvez a única coisa séria que sobrou. O resto? O resto é coach mirim vendendo sonho em pacote de TikTok, pai frustrado fazendo live do filho ‘gênio dos negócios’ e uma sociedade que trocou amarelinha por curso de dropshipping infantil.
Ou seja: ser criança virou um cargo de chefia sem salário. E ser adulto? Virou uma eterna sessão de terapia para lembrar como era ter infância. O mundo não está de ponta-cabeça. Está é de pernas pro ar, com os pés enterrados no algoritmo e a cabeça enfiada no próprio like.
Dedicado ao amigo Eder Freire, que assim como este que vos escreve, não tolera criança-coach.


