Nem pé direito, nem pé esquerdo: quando o ruído político desloca o foco do debate público

 

A política contemporânea é, essencialmente, uma disputa por atenção, enquadramento e narrativa. Em um ambiente marcado por hiperconectividade, ciclos noticiosos acelerados e forte mediação algorítmica, fatos de elevada relevância institucional competem, em desvantagem, com eventos simbólicos de alto apelo emocional. Nesse cenário, o conceito de Wag the Dog torna-se uma ferramenta analítica fundamental para compreender o debate público recente no Brasil.

O termo descreve situações em que um elemento secundário passa a conduzir a agenda, deslocando o foco de temas centrais, geralmente mais complexos e sensíveis. Nos últimos meses, essa dinâmica se materializou de forma clara ao coexistirem investigações envolvendo parlamentares em Brasília, com apreensões de valores expressivos em dinheiro em espécie, e a rápida politização do comercial da Havaianas estrelado por Fernanda Torres.

Operações da Polícia Federal autorizadas pelo Supremo Tribunal Federal, mandados de busca e apreensão e a localização de dinheiro em espécie em endereços ligados a parlamentares são fatos de inequívoco interesse público. Demandam explicações objetivas, transparência e acompanhamento institucional. No entanto, carregam alta complexidade comunicacional: exigem contexto, dados e tempo para correta compreensão.

Já o comercial da Havaianas opera em lógica oposta. A expressão “começar com o pé direito” é simples, amplamente difundida e facilmente assimilável. A partir do momento em que o anúncio foi politicamente apropriado e convertido em símbolo de disputa cultural, deixou de ser apenas publicidade e passou a integrar o campo da polarização política.

Independentemente da intenção original da marca, o anúncio foi recontextualizado e transformado em gatilho de engajamento emocional, boicotes, cancelamentos e debates ideológicos simplificados. Do ponto de vista estratégico, trata-se de um exemplo clássico de fato simbólico superando o fato material na disputa por atenção.

O efeito Wag the Dog não pressupõe conspiração deliberada. Ele se manifesta como dinâmica estrutural da comunicação política contemporânea. Quando uma pauta simbólica apresenta maior capacidade de mobilização, ela é naturalmente amplificada por redes sociais, lideranças políticas, influenciadores e meios de comunicação.

O resultado é o deslocamento do debate institucional para uma narrativa emocional, mais acessível e mais facilmente replicável. No caso analisado, a atenção pública migrou das perguntas objetivas sobre origem, finalidade e rastreabilidade de recursos para uma disputa narrativa envolvendo publicidade, valores culturais e identidade política. A agenda foi alterada, e com ela, o centro do debate.

Do ponto de vista da comunicação estratégica, esse mecanismo é eficiente por três razões centrais:
1. Menor esforço cognitivo
Símbolos e narrativas simplificadas geram mais engajamento do que processos investigativos complexos.
2. Lógica algorítmica das plataformas
Emoção, conflito e pertencimento tendem a alcançar maior visibilidade do que conteúdo técnico.
3. Alta rotatividade informacional
A substituição rápida de pautas impede o amadurecimento do debate sobre temas estruturais.

Esse conjunto favorece o deslocamento de foco, mesmo sem planejamento explícito.

Para profissionais de publicidade e comunicação política, o cenário impõe um desafio claro: gestão de agenda em ambientes de alta volatilidade. As campanhas de 2026 enfrentarão maior judicialização, crises recorrentes e disputas simbólicas intensas.

Respostas exclusivamente institucionais tendem a ser insuficientes. Por outro lado, aderir ao ruído compromete credibilidade e consistência estratégica. A atuação profissional exige equilíbrio entre dois planos complementares:
• Plano institucional, com respostas objetivas, responsáveis e juridicamente sólidas;
• Plano narrativo, capaz de compreender, antecipar e neutralizar a captura simbólica de temas sensíveis.

Algumas diretrizes tornam-se indispensáveis para equipes de comunicação política:
• Gestão ativa e contínua da agenda pública;
• Reancoragem do debate nos fatos, sem amplificar o ruído;
• Monitoramento estratégico do ambiente informacional;
• Fortalecimento de canais próprios, reduzindo dependência do ciclo noticioso e dos algoritmos.

Mais do que reagir, campanhas eficazes serão aquelas capazes de antecipar deslocamentos de pauta e responder com método.

O episódio envolvendo a campanha da Havaianas com Fernanda Torres, analisado em paralelo às investigações recentes envolvendo parlamentares em Brasília, evidencia como a disputa de agenda se tornou um dos principais campos de batalha da política brasileira. O Wag the Dog não é um desvio ocasional, mas um mecanismo recorrente.

Para a comunicação política, especialmente no contexto das eleições de 2026, o desafio será manter foco, credibilidade e estratégia em um ambiente saturado de estímulos. A diferença entre improviso e profissionalismo estará na capacidade de compreender essas dinâmicas e atuar com precisão técnica, responsabilidade comunicacional e visão estratégica de longo prazo.

Por Rafael Medeiros
Estrategista de marketing político e mobilização digital.

Instagram: omobilizadordigital

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